Revirando o baú encontrei um texto que fiz para a época da faculdade a respeito do golpe militar de 1964. O texto é simples, mas sempre oportuno, pois principalmenbte para os mais pobres as arbitrariedades da ditadura não cessaram.
* O título da postagem foi retirada do espetáculo Lembrar é resistir, encenado em 2001 com direção de Nelson Xavier
* O título da postagem foi retirada do espetáculo Lembrar é resistir, encenado em 2001 com direção de Nelson Xavier
O Golpe Militar de 1964
Os precedentes:
As Reformas de Base
O presidente João Goulart acreditava que o Brasil precisava de reformas de base. O problema é que elas mexiam com os privilégios de muita gente poderosa no Brasil. Esses poderosos viram no golpe militar a barreira que manteria sua confortável posição. . Essas reformas de base incluíam reforma agrária, reforma urbana, que controlaria o preço dos aluguéis dos imóveis e ajudaria os inquilinos a comprar a casa própria. As reformas também eram políticas: direito de voto para analfabetos e de sargentos e patentes inferiores nas forças armadas. Essas reformas eram uma proposta para outro tipo de desenvolvimento para o Brasil. Mas mexiam com muitos grupos poderosos. Grupos que para manter seus privilégios recorreriam a mão armada do golpe militar.
A reação da direita
As lutas de classe chegaram ao ponto mais agudo. Valia tudo até calúnias de baixo nível. Madames subiam o morro e diziam que “com Jango, em breve o comunismo vai mandar no Brasil. O Estado vai tomar tudo dos pobres, inclusive os filhos que serão enviados para Moscou e nunca mais voltarão”. Panfletos diziam que Jango baixaria um decreto ordenando que os moradores dividissem seus apartamentos com os favelados.
Jango apresentou sua última cartada: “As reformas de base passariam por bem ou por mal”, como se dizia. Em treze de Março de 1964, apesar do feriado decretado pelo governador do Rio Carlos Lacerda, milhares de pessoas compareceram ao célebre Comício da Central do Brasil. Ali Jango anunciou que estava enviando ao congresso as primeiras reformas de base: expropriação de latifúndios improdutivos, nacionalização de refinarias de petróleo.
No dia 31 de Março de 1964, o general Olímpio Mourão Filho precipitou o golpe. Antes mesmo de renunciar, o senador Auro de Moura Andrade já anunciava o novo presidente: Ranieri Mazzilli, da câmara dos deputados. O novo governo passou a governar por decretos, o chamado AI (Ato inconstitucional). Em 15 de Abril de 1964 era anunciado o general-presidente que nos governaria nos próximos anos: Castello Branco.
Os militares
Por que os militares deram o golpe? Para começar, por causa da própria formação deles. Nas academias, tinha aprendido que as greves, os protestos sociais e as manifestações populares eram uma “baderna” intolerável. Para eles, o que faltava ao Brasil era ordem e disciplina. Felizmente o general e o almirante não ficam desempregados nem recebem o salário de um peão. Infelizmente essa boa condição dificulta compreender que a luta do povo por uma vida mais digna não é baderna. Para muitos militares e civis, o país só teria um governo honesto quando estivesse nas mãos dos generais.Um engano, pois nas ditaduras é que a corrupção é maior, pois a população não pode fiscalizar nada. Nas escolas militares havia uma forte doutrinação anticomunista. Qualquer greve era vista como “infiltração comunista no Brasil”. A idéia que orientou o regime implantado em 1964 era de que a política democrática é inimiga da disciplina social e do progresso e é um poderoso agente de irracionalidade política.
O mito do calor da hora
Existiu uma identidade, uma relação e um conflito entre o regime instalado em 1964 e a manifestação mais crua da essência repressiva que o Estado assumiu na sua obsessão desmobilizadora da sociedade: a tortura.
Durante os 21 anos de duração da ditadura militar, sucederam-se períodos de maior ou menor racionalidade no trato das questões políticas. Foram duas décadas de avanços e recuos, ou como se dizia “aberturas e endurecimentos”. De 1964 a 1967 Castello Branco procurou exercer uma ditadura temporária. De 1967 a 1968 o marechal Costa e Silva procurou governar dentro de um sistema constitucional (em 1968 deu-se a criação do AI-5). De 1968 a 1974 o país esteve sobre um regime escancaradamente ditatorial. De 1974 a 1979 debaixo da mesma ditadura, dela começou a sair.
Em todas essas ocasiões o melhor termômetro da situação do país foi a medida da prática da tortura pelo Estado. Vinte anos depois rememorando esses fatos, o mestre intelectual do golpe militar, o general Golbery do Couto e Silva disse: Nos meses seguintes a revolução houve excessos. Eu achava que tudo não passava de acontecimentos produzidos no calor da hora, como por exemplo, o que fizeram com o Gregório Bezerra. Você não se faz um omelete sem quebrar os ovos. Esses casos me pareciam toleráveis pois haveriam de controlados no futuro.”
A verdade é que a tortura passou a ser praticada como forma de interrogatório em diversas guarnições militares.
Em outubro de 1969, já sob a vigência do AI-5, oficiais do Exército brasileiro escreveram uma triste página na história da corporação. Dez presos políticos foram usados como cobaias numa aula inaugural de tortura na Vila Militar, no Rio. Com a ajuda de Slides, o tenente Ailton mostrou diversos desenhos de diversas modalidades de tortura. O suplício passava por choque elétrico, palmatória nos pés e nas mãos, pau de arara, esmagamento de dedos por barra de metal, ficar de pé sobre as bordas de duas latas abertas. O tenente recitava anotações numéricas e lembrava que o objetivo da tortura não era matar o preso, mas obter informações. A prática da tortura foi incorporada às forças armadas.
Arte e cultura
Por uma fatalidade histórica, começou em 1964 no Brasil um período de supressão das liberdades públicas, precisamente quando o mundo vivia um dos períodos mais divertidos e criativos da história da humanidade. Os anos 1960 formaram a grande década revolucionária. Os anos da minissaia, dos homens de cabelo comprido, da pílula anticoncepcional; da guerra do Vietnã, dos hippies, do feminismo; da revolução cultural na China, da Primavera de Praga, dos Beatles, dos Rolling Stones, de Jimi Hendrix e Janis Joplin, do LSD, do psicodelismo, das viagens a lua, do cinema de Godard, Pasolini e Antonioni; das idéias e dos livros de Sartre, Marcuse, Altusser, Heram Hesse, Erich Fromm e Wilhein Reich; do amor livre, de Bob Dylan, Jim Morrison; de paz e amor e Wodstock. De 1964 a 1968 a cultura brasileira viu o surgimento de novos valores que direta ou indiretamente anunciavam uma certa contestação ao que acontecia no país e no mundo. A censura ainda aceitava algumas brechas (a situação piorou depois de 1968). O teatro era claramente de protesto, buscando conscientizar o público através de choques culturais (quebra de tabus, romper com as normas sociais, agredir a moral pequeno-burguesa) usando atores e atrizes nus, palavrões, cenários caóticos, falas e gestos agressivos ou com sentido vago e uma temática politizada. Os festivais da canção na TV (a globo ainda não era dominante) revelaram ou consagraram compositores como Chico Buarque, Caetano Velloso, Edu Lobo, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Tom Jobim, Vinicius de Morais e toquinho. Cantoras como Nara Leão, Elis Regina e Maria Bethânia.
Quando o Marechal Castelo Branco entrou no palácio do Planalto levou para o governo um mundo onde igualdade racial era uma aspiração filosófica, o homossexualismo uma anomalia, e a condição feminina um bálsamo procriador, amoroso e doméstico. Os generais não sabiam, mas existia toda uma geração de jovens formados fora da ditadura do Estado Novo. Toda essa agitação cultural coexistiu com o dirigismo conservador e anticomunista.
O desprezo pelo povo
Um dos traços mais marcantes da ditadura militar foi o desdém pela população mais simples. No período do “milagre econômico”, o general-presidente Médici chegou a dizer: “A economia vai bem, o povo é que vai mal”. Uma coisa a toa sem importância chamada povo. O ministro Delfim Netto dizia que era para o povo ter paciência, esperar o bolo crescer para depois dividir os pedaços. Até hoje o povo espera sua fatia. O general presidente João Batista Figueiredo chegou a dizer: “Prefiro o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo”. A ditadura conseguiu uma coisa incrível: quanto mais o país crescia, mais difícil ficava a vida dos trabalhadores. De repente houve uma epidemia de meningite. O que fez a ditadura? Proibiu que os jornais divulgassem qualquer notícia a respeito. O que veio em seguida era previsível: os pais, sem saber do surto da doença, não davam importância aquela febrezinha do filho. Não levavam para o posto de saúde, até que a criança morria. A meningite mataria milhares de crianças numa das maiores epidemias do século. Isso mostra o quanto a ditadura era absurda.
O legado da ditadura militar
O principal legado da ditadura é o do predomínio de um economicismo difuso e de uma desvalorização generalizada das políticas e instituições. Uma sociedade em duas décadas submetida a combinação entre modernização econômicavertiginosa, deslocamentos espaciais, predação ambiental, dilaceração de identidades sociais, urbanização forçada e desconsideração completa dos custos humanos e sociais na busca dos chamados “interesses nacionais”. Tratava-se do predomínio puro da esfera econômica sobre a vida social, sustentada a base de autoritarismo e truculência. A política foi posta a serviço dessa razão de estado obcecada pela modernização econômica, sem que a sociedade tivesse a sua disposição quaisquer mecanismos de proteção, de expressão ou representação política. Os meios para tal, foram eliminados em 1964. O país viveu anos de uma perversa combinação: crescimento a qualquer custo com ausência de democracia política.
Fontes: Nova História Crítica do Brasil, Mario Shimidt Ed. Nova Geração
O Globo 2000 (Suplemento do jornal O Globo)
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